quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Toda prosa



  A poesia está onde habita a vida. E muito, muito mais além. Sei que acima de tudo está aqui, e em tudo o que toque a bela, escura tinta do seu olhar. Em cada som mastigado por essas cavernas pequenas de tuas delicadas orelhas. 


   Também nas doces olheiras onde, as memórias encerradas, desenham a maquiagem delicada da viagem que não houve (mas para a qual te preparastes com esmero). Tuas sempre irresolutas decisões. Teu destino ainda por alcançar. Cada palavra vaga flutuando no espaço silencioso do caos que te abraça, e é mui doce o frescor de cada palavra inventada só pra te definir. Muito mais ainda, em toda a ternura que te cerca. 

          
   Mesmo na mais aguda dor, toda tua altivez, vinda como que do teu peito de fêmea apenas possível e para a qual não se soube ainda criar adjetivos, me alcança e emudece. De que valem afinal as palavras? Eis então que abrindo os olhos não mais te vejo. Como ausente estás e qual doente soluço, sem ar. Teu toque macio e gentil me alcança e eis que em meu peito, aliviado, o coração estanca. 

                                                                     *     *    *

   Vejo mais amor nas ruas, nas placas, nos carros. Mais alienígenas e alienados. Julgo estar em paz. Mas afinal, que homem pode em sã consciência ser juiz de si mesmo? Ouço da sala tua aura serena e antecipo em sorriso que estou nos domínios de teu sonho (Tão sereno teu semblante).

   Pois de tudo me impressiona que dentre tantos loucos e tantos santos, muitos bravos e algum, claro, covarde, foi a mim que escolhera. E a mim te cabe cantar, numa balada retumbante para que saibam todos os covardes, todos os bravos, os santos, e ora, claro, cada louco que a mim me tocas. E é minha tão somente a obrigação de reparti - la em sorrisos e beijos. Como se a cortasse c'os dentes e cuspisse a terra a semente donde hão de vir teus frutos. 

   Temo não ser capaz. Mas te olho, branca Penélope repousada a esperar por mim e então eu sei que tudo posso. Fortalecido me debruço sobre ti e abraço minha vocação. E quando caio em si, percebo: Estou mais eu do que nunca.



domingo, 8 de setembro de 2013

Guananira em berço esplêndido (ou Abre teu olho, Vitorinha)

   
http://www.magnomalta.com/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=1554:maguinho-o-boneco-infll-da-elei&catid=27:outras-notas&Itemid=45



    Sirenes ecoam entre os tubarões que singram velozes pela beira - mar. Distante em sua morada, altiva,  Nossa Senhora da Penha limita - se em ajeitar seu manto rosado de nuvens, enquanto espreita a tudo sem dar nenhum juízo. A santa divisa na praia as morenas pretas de areia que se orgulham de suas vergonhas - retas vastidões - as quais vão adornadas de azuis e brancos e tons e outros tons. 

   São mulatas e índias também, tapuias raízes esticadas nas loiras melenas cheirando a formol. Na orla sobram passistas, passantes, seguras de estarem todas cheias do Espírito Santo em sua forma roliça de pombinha.

Ouvi dizer até que Santo Antônio, de visita secreta a Anchieta, correu com o Diabo daqui, e assim deixou livres do Mal os nativos que o Mal ainda não conheciam. Meio assim um São Patrício a livrar a Irlanda das cobras que a Irlanda nunca tivera. Resultado dessa celeuma é que pedrinhas brutais espocaram, espalharramaram - se pelo chão agora então esborrando em ladeiras e ladrilhos transatlânticos. O tempo desde então parece parado aos selvagens que assim bem vivem sem se dar conta.


*        *       *


   Sei que há anos que nada de novo há. Mas que hoje é Domingo e nos é devido, como sempre, Ó, César, dar ao Senhor suas devidas prezas e preces. Parabéns a  minha Ilha de Mel. Parabéns aos barões do café, aos nossos número um. 

   Nossos solares médicos insulares. Nossos juízes de arma em punho e sorriso no bolso. Nossa terra de homens fortes e viris e mulheres direitas de olhos vermelhos (quando não roxos) e vestidos de noiva branquinhos - Deus nos livre do Pecado. Nossas mães com doçura de menina e jeito de matrona - mulher pra casar. Nossos rebeldes sem causa, ora! Tudo vai tão bem há 462 primaveras! Pra que mudar o time que está ganhando? Reclamam de barriga cheia!


   Parabéns a todos pela vitória nossa de todo dia. Onde sobra o romantismo e o futuro morreu mas esqueceu de deitar. 

domingo, 1 de setembro de 2013

Endereço



Reminiscências são tudo o que ela tem agora, dirigindo o seu carro, a cara amassada pela noite inquieta de sono, tentando ainda se acostumar com a luz da manhã, ao passo que as gotas da chuva percorrem o seu caminho gravitacional no para-brisa. Coisas que lhe vem à mente relacionadas ao seu pai que mesmo em toda a sua rispidez arrancava-lhe sorrisos. Lembrou de quando era ainda menina e admirava o pai a fazer suas coisas como se ele fosse um deus consertando o mundo.
Recordou com a maior vontade existente de sua mãe, que mesmo não tendo ido à escola alguma, parecia ser a pessoa mais inteligente do planeta. E como certa vez, bravamente, ela espantou um besouro que adentrou o quarto cor-de-rosa de sua filha (perdoem-me o sexismo). Besouro - mais especificamente o escaravelho - a existência mais irônica e poética já conhecida por ela: rolar bosta orientando-se pelas estrelas.
A notícia em forma de correspondência sobre sua aprovação na universidade federal tinha uma prerrogativa espacial em sua memória. Queria abri-la na frente da família, mas não se continha, experimentando pôr contra a luz para ver o que havia dentro do envelope. "Passei. Adeus, adolescência!".
A universidade de fato foi um divisor de águas. Por sua beleza as coisas pareciam fáceis por lá. Era elevada a categoria de arte pelos colegas (L.H.O.O.Q.). Teve um caso com a professora de Espanhol I (sempre encontrou poesia em tudo o que fosse dito nessa língua) e paixões como a pelos dois amigos, concomitantemente, sem que eles soubessem um do outro e quando questionada, jurou de pés juntos que não, mesmo sendo atéia.
Mas paz para ela nunca gozou de graça, procurava "sarna pra se coçar". A calmaria e a monotonia eram coisas de gente velha que já não esperavam nada além da morte. "Mas paz é isso, não? Algo que apanhamos do outro por intermédio de uma coisa chamada relação. Se quero paz, eu pego a tua. Puro fisiologismo¨, uma vez disse ela numa discussão calorosa em mesa de bar.
E então a formatura, emprego. As responsabilidades lhe caíam às toneladas. Não havia mais tempo. Precisava viver como todos os outros, presa nesse movimento pendular, buscando aliviar as dores do caminho com viagens e placebos tecnológicos.
Sempre esteve em conflito interno por querer não se contradizer. "Mas isso é impossível, meu amor. Teoria e prática são amantes raivosos.", enfatizava o maior de seus romances, o homem que não mais conhecia. Chorou feito criança esses dias ao lembrar dessa tão estranha criatura, enquanto assistia a belíssima apresentação do poema do obsessivo-compulsivo. Pensou em desviar de seu caminho para o trabalho e passar na casa dele. Ele ainda residia no mesmo endereço. Endereço para o qual estudou por anos mudar seus problemas. A mesma rua de sua aurora, uma rua abarrotada por lojas de noivas que por consequência de um bombardeio tradicionalista, fundamentalista, colonizador, idealizava se casar como uma princesa Disney. Lembrança que a levava às gargalhadas toda vez que recorria.
E num irascível desespero por ver seus sonhos corroídos pela mesma pasmaceira que tanto se opunha, acendeu um cigarro, tragando a fumaça e o passado para o peito. Tudo parecia tão absurdo nesse momento dentro daquele carro. Decidiu pegar uma outra direção que não a do presente.
Chovia lá fora e o futuro agora era o que tinha nos bolsos da calça. Mas ela sorriu.
E nunca mais se ouviu falar dela.

"Afinal, qual é o valor da vontade quando o espírito está faltando?"